Eu sei que a gente se acostuma. Mas não devia!
A gente se acostuma a morar em apartamentos de fundos e a não ter outra vista que não as janelas ao redor.
E porque não tem vista, logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas. E porque não olha pra fora, logo se acostuma a aceder cedo a luz.
E à medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão. A gente se acostuma a acordar de manhã sobressaltado porque está na hora.
A tomar café correndo porque está atrasado. A ler o jornal no ônibus porque não pode perder o tempo da viagem.
A comer sanduíche porque não dá para almoçar. A sair do trabalho porque já é noite. A cochilar no ônibus porque estácansado.
A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia. A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone. Hoje não posso ir.
A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta. A ser ignorado quando precisava tanto ser visto.
A gente se acostuma a pagar por tudo o que deseja e o de que necessita. E a lutar para ganhar dinheiro com que pagar. E a pagar mais do que as coisas valem.
Ao choque que os olhos levam na luz natural. Às bactérias da água potável. A gente se acostuma a coisas demais, para não sofrer.
Em doses pequenas, tentando não perceber, vai afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá. Se a praia está contaminada a gente molha só os pés e sua no resto do corpo. Se o cinema está cheio, a gente senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço.
Se o trabalho está duro a gente se consola pensando no fim de semana.
E se no fim de semana não há muito o que fazer a gente vai dormir cedo e ainda fica satisfeito porque tem sempre sono atrasado.
A gente se acostuma para não se ralar na aspereza, para preservar a pele. Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para poupar o peito. A gente se acostuma para poupar a vida.
Que aos poucos se gasta, e que, gasta de tanto acostumar, que se perde de si mesmo.
(Clarice Lispector)
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